Tempos de brincar, de prazer e de chorar

A minha meninice parecia normal. Ou seja, sem aparente diferenciação para alguém com mundo interior já bem maior ao exterior. Na bola de gude, ninguém me vencia. Força e precisão nos dedos. Nas brincadeiras que exigiam esforço físico e rapidez, dificilmente era alcançável. Infantil, porém me sentia poderoso, orgulhoso de mim mesmo, por vencer aqueles inocentes embates.

Contudo, deparei-me com defeitos de gente. Sentia desejos e atração comprimidos pelo sexo oposto. Convivia com lágrimas e reflexões nos recantos por causa da complexidade conjugal entre minha mãe e meu padrasto. Em alguns momentos, estimulado por insinuações maternais, era fato o sentimento de rejeição, como estranho no ninho. Nascia em mim muitos amores platônicos e também o medo de um mundo não vivido.

A vida intimista era um escudo perfeito. Gostava de me esconder naquele universo só meu, construído com múltiplos sentimentos, inomináveis para a minha idade. Ficou mais latente dentro de mim uma força de caráter visível. Como mais velho dos irmãos por parte de mãe, a criatividade me dominava. Rejeitava o mundo já criado. Ansiava pelo meu. Com isso, tentei gestar o mundo perfeito. Era utópico, mas eu não sabia o significado de surrealismo.

A primeira vez em contato com meu corpo foi durante o banho, por acaso, com jato de água quente em direção ao meu glande, produzindo uma sensação inédita de prazer, com gozo sem sêmen. Não sei como foi aquilo. Não lembro ter pensado em alguém. Apenas senti! A partir de então, procurei sempre produzir aquele êxtase, agora, com as mãos.

As lágrimas apareceram junto com o prazer. Fui apresentado ao sentimento de culpa e também à maldade. Vi meu pai agredir minha mãe com alguma frequência. Amava minha mãe e respeitava meu padrasto. Era a criança boa aos olhos alheios, porém censurável aos meus. Era a adolescência chegando com a percepção do livre arbítrio. 

A cerca do arrependimento, com fantasmas e TV

Sem precisão, sobre curtos tempos de crianças, vou relatando as imagens espectras. O primeiro pesar de morte, quando no quintal da minha casa, onde me lembro de grande parte das peraltices, jogava pedras sobre um pássaro branco, acho, já doente. Depois do feito, senti o forte sentido de arrependimento.

Ali, naquele quintal, eu, meu irmão do meio, e alguns amigos, se dependuravam sobre uma cerca de madeira para assistir a quase cinco metros de distância, a televisão do vizinho. Era prazeroso, no sol ou na chuva, ver vultos em movimento no vídeo hipnotizante. Nunca fomos convidados a entrar. Esta parte me chama atenção. Por que?

Ao lado da minha casa, havia uma serraria de móveis e uma lenda urbana: um fantasma que morava dentro daquele posto de trabalho. A descrição era de que o espírito desencarnado tinha um braço sem mão, serrada ali, durante em vida, num acidente de trabalho. Quando a gente entrava lá com os colegas, eram com olhos esbugalhados.

Passando o play, a maior alegria foi quando meu padrasto trouxe de surpresa a primeira televisão, em preto e branco, para a sala. Não tinha como descolar os olhos, assistindo desenhos animados e a novela Irmãos Coragem. Foi a libertação da cerca do vizinho enigmático.

Nadando entres dores, chuvas, uvas e riachos

As dores marcam o histórico existencial. A primeira dor, pela ordem, foi quando brincando sob a chuva, correndo ao redor do pé de abiu, em meio à lama, tropecei com um dedo em especial, do pé esquerdo, sendo o amigo do dedão quase decepado por uma boca de manilha escondida até que a achei em sangue. Minha mãe levou-me para o hospital e fiquei em casa com o pé para cima até firmar a cicatrização.

Em outra casa, próxima, entre paredes pareadas, tinha hábito de subir utilizando as costas e os dois pés até chegar ao terraço do vizinho, onde era cultivada uma videira. E descia da mesma forma com alguns cachos, a maioria verde. Mas, um dia me faltou sorte, para não dizer descuido, e cai do alto a baixo, ralando as costas e parte das pernas. Esta imagem está fixada pela profundidade das dores.

Quando me aventurava a tomar banho de riacho, senti mais presente a morte, pois sem saber nadar como os adolescentes maiores, fui arrastado pelas correntezas do raso para áreas mais fundas. Com água ao nariz, senti muito medo. Fui resgatado pelos colegas mais experientes. Aquele medo não foi suficiente para me inibir de tentar de novo.

Em casa, quando meu padrasto estava em casa, confesso, a possibilidade de apanhar eram reais. Como o mais velho dos irmãos, era disciplinado com mais exigência. E por não ser seu filho, mas enteado, umas boas palmadas e “correadas” significavam rituais quase semanais, quando ele chegava de viagem como caminhoneiro do trecho entre Cachoeiro de Itapemirim-ES X Vitória X MG.

Bem, tive muitas dores. Relatando as da infanto-juvenil. Carrego uma marca do lado direito lombar quando tentei pular de uma pedra para outra num córrego do bairro, caindo entre lodo, águas e pequenas rochas. Enfim, algumas dores de criança. As dores de adulto estão por ser narradas entre, também, alegrias.

Conversando com plantas e me descobrindo

A introspecção, fizera-me um adolescente místico. As dores eram expansivas no meu mundo interior. Quanto ao mundo exterior, sentia-me indestrutível, invisível e vitorioso por achar-me diferente dentre outros seres. Não tinha certeza de nada, contudo me considerava predestinado a uma grande missão, como abrir o Mar Vermelho.

A partir dos 12 anos, pelo registro do diário em livro, comecei a conversar com plantas. Gostava de cuidar da vida vegetal em vasos da minha mãe. Eu conversava sobre tudo: guerras, pessoas, sexualidade, perguntava e me conectava com as feições da folhas e pétalas várias. Foi criando em mim um espírito poético aquela sensibilidade.

Havia um lugar específico, num quintal cheio de pampoulas, uma planta esquia com  pétalas brancas e também coloridas, onde costumava me sentar numa mureta e fazer questionamentos sobre a vida. O vento era o pêndulo que, para mim, significava, quando passava entre aquelas folhagens, a decodificação das inquirições.

Era o nascimento de um jovem homem se descobrindo.

Da música para a arte e a porta do misticismo

Para navegar no meu mundo interior e intenso, descobri a música. O rock foi o estilo mais apropriado para o meu universo em expansão. Liberava dopamina para me imaginar onipresente e onipotente. Trancava-me no quarto de casa e me deleitava em letras que desconhecia com melodia enebriante e excitante.

O gosto pela bandas de músicas era eclética. Tinha bom gosto para distinguir uma onda sonora clássica de uma efêmera. A música me liberou para uma veia artística, além de escrever. Passei a pintar quadros de modo muito amador, porém obsessivo em desenhar em linhas abstratas o surrealismo pelos meus olhos.

A música e a pintura me tornaram mais solitário. As pessoas não me importavam tanto quanto meus sonhos emanados daquele poder dominante. Não sabia, mas estava naquele momento forjando a personalidade. Um jovem com ímpetos surpreendentes sem me apresentar plenamente ao mundo externo.

A fase mística se iniciava, pois o mundo era assustador e eu precisava, naquela época, de encontrar explicações fora dele. Tinha certeza sobre uma porta dimensional com planeta sobrenatural e tridimensional. estava na terceira visão.